Quem vê Fenelon Aldophe trabalhando na construção de casas em Paranavaí, noroeste do Paraná, não imagina que o haitiano, há oito meses no Brasil, é professor, bacharel em Teologia, ex-policial formado pelas Forças Armadas do Haiti e fluente em quatro línguas. Assim como milhares de outros haitianos, Fenelon migrou para o Brasil em busca de uma vida melhor. Desde 2010, ano em que o Haiti foi atingido por um terremoto, milhares de pessoas têm deixado o país. Como o Brasil "abriu as portas" para os haitianos em janeiro de 2012, com a resolução nº 97, o país passou a ser destino certo para os caribenhos.
Dos aproximadamente 25 mil haitianos presentes no Brasil, há pelo menos 120 deles em Paranavaí. A maioria trabalhando em frigoríficos ou na construção civil.
Mesmo longe de sua área de conhecimento, Fenelon não reclama do trabalho. "O que os haitianos querem é trabalhar. No Haiti não tem trabalho e no Brasil tem. Queremos é continuar trabalhando".
Ainda assim, não esconde a vontade de voltar a lecionar. "Eu gosto de estudar. Quero fazer uma faculdade e poder dar aulas aqui no Brasil", comenta Fenelon, que trouxe todos seus diplomas do país caribenho na esperança de conseguir uma boa colocação no mercado de trabalho. O haitiano possui ainda cursos de segurança, gestão de conflitos e de eletricista e instalação sanitária, esses dois últimos que já o ajudaram a conseguir uma promoção. De servente ele passou para meio-oficial de obra.
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Situações como a de Fenelon são comuns entre os imigrantes do Haiti no Brasil. Muitos possuem formação universitária, mas encontram dificuldade de melhores colocações no mercado de trabalho devido ao preconceito e o idioma. No grupo que está em Paranavaí, há ainda um professor de francês, um pedagogo e um contador. A maioria deles fala mais de uma língua.
Robinson Clervoyan, que também está no Brasil há oito meses, conta sobre a experiência de trabalhar no abate de frangos. Ele explica que um frigorífico da cidade foi buscá-los no Acre. "Foram cinco dias de viagem de ônibus até Paranavaí. Fiquei seis meses na empresa, mas saí. Eles pagam muito pouco".
É Fenelon quem dá mais detalhes sobre o trabalho. O estrangeiro conta que o primeiro grupo de haitianos ficou apenas três meses na empresa. "Nós ficamos esse período e depois eles deram um papel e pediram para que a gente assinasse". O documento era a rescisão de contrato após o período de experiência. Isso fez com que os trabalhadores saíssem sem receber qualquer benefício.
Ainda que duro, o trabalho braçal é visto como uma oportunidade única para os haitianos. Depois de um tempo trabalhando no frigorífico, eles resolveram mudar de área e agora contam com melhores salários e carteira assinada.
Os dois encontraram na construção de casas uma nova oportunidade. Na obra visitada pelo Portal Bonde, estavam ainda Renel Louisius, Simond Yueny e Wilguens Oxane. Esforçado, o grupo só recebe elogios do mestre de obras Paulo Gonçalves da Silva. "Eles são muito inteligentes e educados. Estão sempre agradecendo e são bastante prestativos".
Mototaxista em Saint-Marc, no Haiti, Robinson disse que só encarou a aventura até o Brasil por causa do trabalho. "Penso que com o trabalho vou conseguir mudar de vida no Brasil".
O pastor Zedequias Cavalcante, da Igreja Assembleia de Deus da Vila Operária, é quem dá suporte aos haitianos em Paranavaí. O pastor os conheceu assim que chegaram à cidade e desde então é tido como um pai para os imigrantes.
Zedequias comenta sobre o esforço que tem sido para garantir melhor condição de vida aos haitianos. Junto com a esposa, Mai Kellen Cavalcante, o pastor iniciou aulas de português aos cerca de 70 alunos que se reúnem todas às terças-feiras em uma sala improvisada no salão da igreja. Vários deles já dominam bem a língua. Fenelon destaca a importância do aprendizado. "Aprendendo o português acho que vamos conseguir condições melhores".
Outra medida adotada pelo pastor é a elaboração de currículos. Zedequias reuniu as informações de todos os haitianos da comunidade. Ele trabalha agora para montar a ficha de cada um e as direcionar para as empresas.
No último dia 30 de janeiro, o Pastor Zedequias, Fenelon e alguns outros haitianos se reuniram com o procurador Raphael Otávio Bueno Santos, da Procuradoria da República de Paranavaí para discutir a situação dos imigrantes na cidade. Durante o encontro, os haitianos conheceram seus direitos trabalhistas e abordaram algumas dificuldades enfrentadas.
Seis países e uma viagem difícil
Uma resolução do Conselho Nacional de Imigração do Ministério do Trabalho e Emprego, em 2013, determinou a emissão ilimitada de vistos até janeiro de 2014 pela embaixada brasileira no Haiti.
Apesar disso, a maioria dos imigrantes encara uma rota alternativa para chegar ao território nacional devido a falta de recursos, a burocracia e a demora para a emissão do visto. O trajeto que começa em Porto Príncipe, no Haiti, passa por outros quatro países antes de chegar ao Brasil, mais precisamente no Acre, e pode levar meses.
Fenelon Aldophe afirma que a viagem até o Acre foi o momento mais difícil. "De Porto Príncipe fui para Santo Domingo, na República Dominicana. Depois passei pelo Panamá, Equador e Peru antes de chegar no Acre". A falta de recursos dos imigrantes é um dos fatores que fazem com que a viagem se torne ainda mais longa e exaustiva. "As vezes chegamos em um lugar e acaba o dinheiro. Então temos que trabalhar para conseguir juntar e continuar a viagem".
A estadia no Peru, por exemplo, é relembrada com tristeza por Fenelon. "No Peru nos tiram tudo. Se tem dinheiro, pegam o dinheiro, se tem relógio pegam o relógio".
Ao chegar no Acre, os haitianos são levados até um abrigo com capacidade para 400 pessoas, mas que está sempre superlotado. "No Acre é muito difícil. Há muitos problemas para comer, para dormir, para ir ao banheiro", conta Fenelon.
Longe da esposa e dos quatro filhos, Fenelon tem esperança de trazer a família ao Brasil, mas avisa que não vai permitir que os familiares façam o mesmo trajeto que ele fez. "Prefiro voltar do que ver minha família passar pelo que passei".
Família e fé
Os haitianos buscam na fé e na família a força para lutar por uma nova vida no Brasil. Robinson Clervoyan destaca como principal objetivo trazer a esposa para morar com ele em Paranavaí. Pai de quatro filhos, ele traça como meta reunir toda a família na cidade paranaense. "É muito importante para mim. Um homem não pode ficar sem sua mulher. Sou cristão e o cristão não pode cometer pecado, o cristão precisa ficar junto com sua mulher".
Visto como um "líder" dos haitianos em Paranavaí, Fenelon é enfático quando lembra da família. Com os olhos cheios de lágrimas ele conta que se no prazo previsto não conseguir o visto de permanência, volta ao Haiti para buscar a esposa e os filhos. "Prefiro sofrer aqui para que minha família não sofra no Haiti".
É no contato com a família que eles relatam os principais problemas. Mas a comunicação é o principal empecilho. Tanto Robinson quando Fenelon reclamam que é impossível conversar com as esposas através do celular. "Você coloca crédito no celular e não consegue conversar mais do que dois minutos", diz o primeiro.
O meio-oficial de obra revela também o problema para enviar dinheiro aos familiares. Além de arcar com as despesas em Paranavaí, a cada remessa de dinheiro eles pagam uma taxa de R$ 50 pelo serviço, independente do valor enviado. Para isso, os haitianos precisar ir até Maringá. Outro fator agravante é o dólar, moeda corrente no país caribenho. Assim, o dinheiro que eles ganham no Brasil acaba ficando ainda mais desvalorizado.
Nem mesmo a viagem, o trabalho pesado e a dificuldade para manter contato com a família desanima os haitianos. Robinson já decidiu que vai permanecer no noroeste do Paraná. "Aqui fui muito bem recebido, as pessoas são simpáticas e me tratam bem. Nunca passei por qualquer tipo de preconceito. Quero trazer minha família para morar aqui".
A esperança de reunir todos novamente eles depositam nas mãos do pastor Zedequias Cavalcante. Foi ele quem abriu as portas de sua igreja para que os haitianos se reunissem. Todos os domingos os imigrantes se encontram na Assembleia de Deus para participarem de um culto feito à maneira haitiana. "Eles fazem a celebração da maneira deles, tudo em crioulo haitiano e com músicas de lá. É muito bonito de ver a fé que eles têm", comenta Zedequias. Para que ninguém fique de fora, o pastor conseguiu ainda um ônibus para transportar os haitianos de casa até a igreja.
A grande missão do pastor no entanto é trazer a família dos haitianos até o Brasil. Ele falou à reportagem que busca com empresários financiamento para que os estrangeiros consigam pagar o visto dos familiares no Haiti e evitar a longa jornada até o Acre. Foi por meio do pastor Zedequias que os haitianos conseguiram deixar os abrigos dos frigoríficos e alugar casas na cidade. "Como eles não tem fiadores conseguimos com a própria comunidade casas para eles dividirem entre três ou quatro pessoas", comemora o pastor.