Marilene Ferraz, de 50 anos, conseguiu no último dia 20 de janeiro o aval do STJ (Superior Tribunal de Justiça) para desarquivar o inquérito que trata da morte do seu filho Davi Gregório Ferraz dos Santos, que levou 15 tiros durante um suposto confronto com a PM (Polícia Militar), em 15 de junho de 2022, na Vila Recreio, Centro de Londrina. Ela nega veementemente a hipótese de que o adolescente estivesse armado e contesta o que ela chama de diversas inconsistências no processo, que agora será reanalisado pelo TJPR (Tribunal de Justiça do Paraná).
O jovem, de acordo com a mãe, saiu do bairro Parigot de Souza (Zona Norte), onde morava, a fim de comprar um carregador para o celular que havia ganhado de presente. Já na região central, enquanto comia um salgado, foi visto por PMs que averiguavam uma denúncia anônima de tráfico, momento em que teria se assustado e corrido para dentro da casa onde foi baleado. Segundo o laudo apresentado à reportagem por Marilene, dos 15 tiros que acertaram o menino, quatro foram disparados pelas costas.
A batalha judicial começou imediatamente, com buscas por testemunhas e laudos periciais, e foi intensificada após os familiares de Davi - que tinha apenas 15 anos quando foi executado - não concordarem com o arquivamento do inquérito quatro meses após o fato, determinado pelo MPPR (Ministério Público do Paraná) e homologado pelo TJPR. Os órgãos apontaram a legítima defesa dos três policiais militares. Marilene e seu marido, no entanto, queriam que o caso fosse reexaminado e julgado novamente, alegando que havia provas suficientes para condenar os envolvidos.
Após análise do mandado de segurança, o STJ decidiu a favor dos familiares, determinando que o inquérito fosse enviado ao Procurador-Geral de Justiça do Paraná para reavaliação. Isso porque, segundo uma recente decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), a vítima ou seus representantes têm o direito de questionar o arquivamento e solicitar uma nova análise.
O Portal Bonde esteve na tarde desta terça-feira (4) na residência de Marilene, que mostrou trechos da ação que corre em segredo de justiça. Nas cerca de 300 páginas, diversas laudas aparecem dobradas, o que segundo ela, são as sinalizações de todas as contradições encontradas. A agente comunitária de saúde, que atua em uma UBS (Unidade Básica de Saúde) da Zona Norte do município, assumiu a persona de uma profissional experiente em legislação. Desde o acontecimento que marcou a sua vida, ela se expressa como uma advogada com anos de carreira, usando termos técnicos e explicando o significado de todos eles. "A gente falando assim parece que é juíza ou advogada, né? Porque eu nunca soube esses termos, mas agora eu aprendi tudo", diz a servidora municipal.
Em seus olhos e falas, são aparentes a angústia e o desejo por justiça, que também são representados por movimentos inquietos e uma fala constante, quase sem pausa. Durante a entrevista, as frases impetuosas eram frequentemente interrompidas por lágrimas e um choro ressentido, principalmente quando revia as fotos do corpo do filho mutilado.
"Esta é a mão dele com os dedos decepados [aponta para a foto]. Diz o doutor que, como ele tinha 15 anos, na inocência, achou que se fizesse assim [mãos no rosto], impediria a bala de entrar no peito, aí o projétil atingiu as mãos dele. Ele era destro, não tinha como estar pegando numa arma sem que ela estivesse embebida em sangue, pois os dedos estavam decepados. No laudo da polícia científica, estava escrito que a arma foi entregue posteriormente sem nenhuma sujidade, sem nenhuma gota de sangue", questiona.
Marilene também não aceita o relato dos policiais de que junto com Davi foram encontrados dinheiro e drogas e se pergunta por que demoraram tanto para chamar o Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência).
"No laudo, está escrito homem, adulto, com arma de fogo e droga ilícita, início do fato 17h55 e morte 17h57. Como o doutor disse, 'a morte do seu filho foi instantânea', mas eles chamaram o socorro só às 18h55, uma hora depois. E, ainda, não foi feita a exumação [do corpo], porque consideraram que não precisava", relata, destacando os erros que encontrou na documentação.
Para ter direito a argumentar todos esses detalhes, a agente de saúde desembolsou até o momento R$ 18 mil para custear os honorários advocatícios. Ela garante que vai até o fim e não deixará de "lutar" até que a inocência de Davi seja comprovada. "Eu tenho total certeza da inocência do meu filho. Ele não era criminoso, nunca roubou, nunca matou. Tenho certeza que ele não tinha capacidade de pegar em uma arma. Essa casa, que falaram ser um ponto de tráfico, não era dele. Ele nunca passou por lá. Tenho certeza, conheço o meu filho!", vocifera.
Estudioso e religioso
Contato com entorpecentes
Em determinado momento, Davi começou a demonstrar mudanças em suas atitudes, o que preocupou Marilene. Ele pediu para conversar com a mãe, mas adiou o assunto por uma semana, até que um dia decidiu desabafar.
"Ele deitou na cama e ficou conversando um pouco comigo com o rosto escondido e perguntou: 'Mãe, eu tô muito diferente?'. Eu falei que às vezes ele me respondia". Decidido a contar sobre o que havia feito, o menino prosseguiu. "Ele disse: 'A senhora vai chorar', mas eu prometi que não ia chorar. Então, ele falou, escondendo o rosto no travesseiro, que tinha experimentado maconha", lembra a mãe.
Surpresa, ela perguntou onde ele havia conseguido a droga, já que não trabalhava e nem recebia mesada. Davi explicou que havia recebido o entorpecente de amigos.
Em 2021, já com o vício assumido para a família, ele foi abordado pela PM em uma praça e encontrado com uma pequena quantidade de maconha para uso próprio. Os agentes o levaram para casa e fizeram uma revista na residência, mas nada foi encontrado. Após o ocorrido, passou a frequentar um projeto de ressocialização. No período, também fez algumas tatuagens com o aval dos pais.
Reparação
Marilene deixa explícito que a sua movimentação não é apenas para comprovar a inocência de Davi, mas também para dar voz a todas as mães que perderam os seus filhos em supostos confrontos com a PM. Além de trabalhar em causa própria, ela é atuante em movimentos sociais que buscam mais transparência nas forças de segurança do Estado.
"A gente gostaria de câmeras nas fardas policiais e viaturas, projetos de lei e clareza nas investigações. Isso traz transparência não só para as famílias atingidas, mas também para o policial que quer agir dentro da lei."
Ela também é integrante do grupo "Justiça por Almas - Mães de Luto em Luta", que cobra com protestos pacíficos respostas do governo do Paraná sobre as mortes dos familiares e amigos das dezenas de membros.
A servidora municipal é enfática ao dizer que espera uma reparação do Estado pela morte de Davi, mas reflete que nenhum montante será capaz de substituir a dor da sua maior perda. "A luta é grande, é árdua e isso não vai trazer o meu filho de volta. É irreparável. Não se tem valor para indenizar. É como se eu dissesse assim para você 'quanto vale a vida do seu filho?'. Porém, eu tenho certeza que se tivessem que indenizar cada família, diminuiriam as mortes, porque, quando se fala em dinheiro, tudo muda."
A reportagem contatou a assessoria de imprensa da Polícia Militar do Paraná, que informou que "irá dar fiel cumprimento a toda e qualquer decisão judicial". Já a SESP (Secretaria Estadual de Segurança Pública) informou na tarde desta quinta-feira (6) que "não cabe às polícias comentar decisões judiciais".
Lembranças
A morte de Davi transfigurou o dia a dia de Marilene e de toda sua família. Estável há 16 anos, ela precisou abandonar o trabalho por conta das constantes lembranças de conversas por telefone que tinha com o filho.
A sua casa, conquistada com anos de trabalho, foi praticamente descartada. Para ela, conviver com as recordações em cada canto da residência seria uma tortura. "Mudei de casa, porque o portão não abria mais. Mudei de trabalho. Mudei de paróquia, porque ia à missa e ficava vendo os tênis, as vestes dos meninos e, como sei que não é ele, olho só para os pés", desabafa.