A escalada do preço do gás de botijão em meio à crise econômica gerada pela pandemia reacendeu no Congresso o debate sobre políticas sociais para subsidiar o combustível à população de baixa renda, que vem apelando a lenha ou carvão para cozinhar suas refeições.
Em meados de fevereiro, o preço médio do botijão no país atingiu o maior valor desde que a ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás e Biocombustíveis) começou a compilar os dados, em 2004. E, mesmo com a isenção de impostos anunciada pelo presidente Jair Bolsonaro em março, o preço do produto não parou de subir.
Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 14 milhões de domicílios brasileiros usavam lenha ou carvão para preparar alimentos em 2019, número equivalente ao do ano anterior e a cerca de 20% do total de domicílios do país.
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A EPE (Empresa de Pesquisa Energética) estima que, já em 2018, combustíveis como lenha e carvão ultrapassaram a fatia do gás de cozinha na matriz energética residencial brasileira, tendência que, segundo especialistas, pode ter se acentuado na pandemia.
A estimativa é feita em toneladas de petróleo equivalente. Como lenha ou carvão têm poder calorífico bem menor ao do gás, é necessária uma quantidade bem maior desses combustíveis para obter o mesmo resultado na cozinha.
Além de poluidor e menos eficiente, o consumo de lenha ou carvão é prejudicial à saúde dos moradores da residência. Mas tem sido a única alternativa para famílias como a da estudante de serviço social Nadjane dos Santos, 27, de Salvador.
"Com três crianças, mais despesas com aluguel, água, energia, medicações para minhas filhas, internet móvel para estudar e manter contato com clientes, não tenho condições de comprar gás, senão a gente não come", diz ela.
Nadjane trabalha como trançadeira de cabelos e vendedora ambulante de salgados, atividades que são parte do setor mais afetado pela pandemia, o de Serviços. Hoje, sobrevive com cerca de R$ 800 por mês, dos quais R$ 123 vêm do programa Bolsa Família.
Sem condições de gastar de R$ 80 a R$ 100 em um botijão de gás, ela improvisou um fogão com tijolos no quintal de casa e recolhe lenha nas redondezas, uma região pobre com cerca de 50 mil habitantes. Quando chove, apela para um fogareiro com álcool.
A escalada do preço do botijão ganhou força no fim de 2019, após o fim do subsídio cruzado dado pela Petrobras desde 2003, quando o governo Luiz Inácio Lula da Silva determinou que a empresa vendesse mais barato o gás envasado em botijões de 13 quilos.
A desvalorização cambial acrescentou outro ingrediente ao problema, pressionando ainda mais os preços nas refinarias, que seguem as cotações internacionais do petróleo e as variações do dólar.
Há dois meses, o preço médio do botijão ultrapassou pela primeira vez a barreira dos R$ 81. Na última semana, segundo a ANP, o produto era vendido a R$ 84, alta de 22% em relação ao valor vigente na semana em que o subsídio foi extinto, em 2019.
O cenário provocou uma enxurrada de projetos de lei sobre o tema no Congresso. Dos 28 textos hoje em tramitação, 12 foram apresentados e 2020 e 8, em 2021.
"A demanda da população de baixa renda é muito sensível a preço e a sua renda", diz o pesquisador do Grupo de Economia da Energia da UFRJ, Marcelo Colomer. "Isso não só justifica como legitima a definição de políticas públicas".
Os projetos no Congresso discutem três soluções principais: a criação de um programa social, a inclusão do botijão de gás na cesta básica e o tabelamento de preços, alternativa que enfrenta resistência do governo, da Petrobras e das empresas do setor.
Autor de um dos projetos, o deputado federal Christino Áureo (PP-RJ) avalia que a isenção concedida pelo governo em março é insuficiente e acaba subsidiando famílias que têm condições de comprar o botijão.
O desconto é de R$ 2,18 por botijão, o que representa uma renúncia fiscal de R$ 1,2 bilhão por ano. "Se destinarmos essa renúncia totalmente para o Bolsa Família, daria um desconto de até R$ 30 por botijão", defende.
Seu projeto prevê o uso do cartão do Bolsa Família para direcionar o subsídio. O valor destinado ao botijão de gás só poderia ser usado em estabelecimentos que vendem o combustível.
Áureo defende que a estratégia adotada pelo governo, de dar um pequeno desconto para todos, "não é política pública". "É desoneração sem capacidade de mensuração de resultados, que é o pior tipo de política pública que se pode ter".
Ao dar o desconto para cadastrados no Bolsa Família, diz, é possível saber se o beneficiário migrou da lenha para o gás ou se melhorou padrão nutricional.
As propostas para incluir o botijão na cesta básica também têm efeitos no preço, ainda que menores, pela redução da carga tributária estadual, hoje responsável por cerca de 14%, em média, do preço final do produto.
Estudo da LCA Consultores estima que a medida provocaria corte de 9,1% a 17,3% no preço do botijão, dependendo do estado. A menor variação se daria em São paulo e a maior, em Pernambuco.
Os responsáveis pelo estudo afirmam que os maiores valores de ICMS são cobrados justamente nos estados de renda mais baixa e de maior consumo de lenha e carvão, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
A mudança na tributação, porém, depende da disposição de governos estaduais a perder arrecadação.
A posição do governo Bolsonaro sobre as propostas não é consensual. Segundo fontes, o Ministério da Economia tem uma posição mais refratária à adoção de subsídios, enquanto o Ministério de Minas e Energia vem estudando soluções para suavizar as variações de preços dos combustíveis.
A reportagem procurou as duas pastas e o Ministério da Cidadania, responsável pela gestão do programa Bolsa Família, mas nenhum deles quis dar entrevistas sobre o tema.
"Estamos vendo o empobrecimento da população e o aumento do consumo de lenha. É efetivamente uma questão social", diz Sérgio Bandeira de Mello, que preside o Sindigás, que reúne os distribuidores do produto. "Não é o setor privado que vai resolver."
"À medida em que a dificuldade aumenta, seja pelo preço, seja pelo desemprego, mais pessoas vão correr atrás da lenha para cozinhar os alimentos, mesmo com o risco de problemas de saúde", conclui o presidente da Abragás (associação que representa a revenda do produto), José Luiz Rocha.