Certos elementos da cultura de animais não humanos podem ser capazes de atravessar a barreira entre espécies, fazendo com que bichos muito diferentes entre si desenvolvam tradições compartilhadas ao longo do tempo, afirma uma dupla de pesquisadores.
A ideia pode parecer maluquice à primeira vista, mas já há uma massa considerável de dados indicando que esse tipo de fenômeno, apelidado de "co-culturas", está acontecendo em diversos lugares do mundo, afirmam os autores de um novo estudo sobre o tema.
Cédric Sueur, da Universidade de Estrasburgo (França), e Michael Huffman, do Centro de Pesquisas sobre Vida Selvagem da Universidade de Kyoto (Japão), apresentaram critérios para identificar possíveis co-culturas em artigo publicado há pouco na revista científica Trends in Ecology & Evolution.
Alguns dos exemplos aventados pelos dois envolvem a participação de seres humanos, os quais, é de se imaginar, seriam mais conscientes ao travar contato cultural com diferentes espécies. Mas o fenômeno também é capaz de emergir quando outros animais começam a interagir entre si.
Talvez o exemplo mais chocante venha do próprio Japão, onde Huffman trabalha. No país asiático, certas populações de macacos-japoneses (Macaca fuscata) e de sikas (Cervus nippon, uma espécie de veado de pequeno porte) simplesmente parecem ter virado amigas.
A coisa parece ter começado com o fato de que os sikas seguem os primatas para se alimentar dos frutos que os macacos deixam cair das árvores e (com o perdão dos leitores de estômago mais delicado) também para comer suas fezes. Alguns macacos chegam a catar piolhos dos ungulados. Na ilha de Yakushima, a proximidade é tamanha que os veados permitem que os primatas os cavalguem. Também nessa ilha, bem como em outra localidade, há contato sexual entre as espécies.
Outros casos não costumam ser tão íntimos, mas há diversos outros exemplos bem documentados de colaboração entre espécies diferentes. Em Moçambique e na Tanzânia, o célebre pássaro-indicador (Indicator indicator) aprendeu que conduzir seres humanos da região até colmeias de abelhas selvagens faz com que ele ganhe um suculento repasto de cera (sim, a ave se alimenta dessa matéria-prima), enquanto as pessoas coletam mel.
Esse tipo de busca colaborativa de alimentos acontece também quando o assunto é caça. Corvos costumam levar lobos até locais onde há carcaças de animais, porque os carnívoros de grande porte conseguem retalhar a carne de uma maneira que facilita o acesso dos corvos à comida mais tarde (já que os bicos deles não conseguem cortar grandes pedaços). E os golfinhos-nariz-de-garrafa e as falsas-orcas da Nova Zelândia costumam formar cardumes mistos, chegando a mais de 300 indivíduos, para confinar e consumir aglomerados de peixes.
Por que não considerar esse tipo de colaboração como uma forma de comportamento instintivo?
Acontece que tais interações não são universais, aparecendo apenas em algumas subpopulações de cada espécie, e precisam ser aprendidas e transmitidas por cada nova geração, além de não serem motivadas apenas pelo ambiente específico. É por isso que os cientistas destacam a semelhança entre elas e as tradições culturais humanas.
Além disso, como no caso dos macacos-japoneses e dos sikas, nem sempre o aprendizado mútuo tem a ver com a alimentação. Em algumas espécies de aves, por exemplo, os tipos de canto, uma forma importante de sinalização, podem acabar convergindo acusticamente -ou seja, ficam mais semelhantes ao ouvido. E há ainda o compartilhamento de "plantas medicinais", com várias espécies consumindo os mesmos vegetais quando ficam doentes.
Um elemento importante que ainda precisa ser investigado, segundo a dupla de pesquisadores, tem a ver com os mecanismos cognitivos que permitem que certas espécies e certos indivíduos consigam aprender com animais de espécies diferentes. Isso poderia trazer dados relevantes para entender a evolução da inteligência animal de maneira mais ampla, dizem eles.
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