Um parecer emitido pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) mencionou a maternidade da professora Cibele Russo, do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da USP de São Carlos, como justificativa para baixa produtividade na produção científica.
O documento, emitido em 22 de dezembro de 2023, cita o número de alunos de mestrado e doutorado orientados no período, apontando que as licenças-maternidade "parcialmente" explicariam o "pequeno número de alunos formados".
Aponta também que o período pós-parto afetou suas publicações.
"A proponente teve licença-maternidade no período e isso certamente afeta a produção científica de forma muito significativa", afirma o parecer. "Além disso, acredito que com os dois filhos já maiores irá focar no aumento da sua produção científica e formação de alunos de mestrado e doutorado."
A pesquisadora teve a bolsa de produtividade pela qual havia se candidatado rejeitada pela agência de fomento.
Para Russo, um dos principais problemas está na vida pessoal se tornando objeto da avaliação de pesquisadoras que são mães, um problema que não acontece com homens, por exemplo.
"Para outros pesquisadores, é a baixa quantidade ou qualidade de artigos ou de orientações ou qualidade do projeto. Mas para as mulheres que são mães a questão da maternidade sempre aparece. Então, é assim, 'olha, a produção dela foi baixa, mas também é porque ela teve filho, né?'. Então, é isso que incomoda mais, é a questão pessoal ser mencionada no parecer científico, em que deveria discutir somente a qualidade dos trabalhos", diz ela à reportagem.
Procurado pela reportagem, o CNPq afirmou que não iria se posicionar sobre o caso, pois uma nota publicada no início de janeiro contemplaria as perguntas da reportagem acerca da maternidade da pesquisadora sendo mencionada em sua avaliação.
A nota diz que a Diretoria Executiva da agência determinou que seja aberto um procedimento investigativo para analisar a elaboração e o processamento dos pareceres, que chamou de "preconceituosos".
"Finalmente, o CNPq reitera seu compromisso com a ciência diversa e inclusiva, considerando dimensões de gênero, étnico-raciais e assimetrias regionais, não tolerando atitudes que expressam preconceitos de qualquer natureza, sejam eles de gênero, raça, orientação sexual, religião ou credo político", diz, em nota.
Outra pesquisadora, que pediu para não ser identificada, também teve a maternidade mencionada como "problema pessoal" em uma tréplica emitida pelo CNPq. Após a recusa do pedido de bolsa, entrou com um recurso afirmando, entre argumentos sobre sua produção científica, que a produtividade diminuiu no período entre 2016 e 2017 em decorrência da gravidez e nascimento do primeiro filho.
"No entendimento de que problemas pessoais certamente influenciam em muito a nossa atividade profissional, estes não podem, todavia, de maneira alguma alterar um parecer estritamente científico como o apresentado pelos colegas do CA [comitê de acessoramento]", segundo trecho do parecer.
No fim de 2023, a professora Maria Carlotto, do curso de Relações Internacionais da UFABC (Universidade Federal do ABC), revelou que um parecer da agência afirmou que "provavelmente suas gestações atrapalharam" a realização de pós-doutorado fora do país, "o que poderá ser compensado no futuro".
Carlotto também teve o pedido de bolsa recusado pelo CNPq.
Após seu relato, a agência tornou obrigatória a extensão de dois anos por gestação ou adoção para a avaliação de bolsistas que são mães.
A bolsa produtividade funciona como uma remuneração para pesquisadores de alta performance que se destacam em suas áreas de pesquisa. No processo seletivo, são avaliados critérios, como projeto de pesquisa, currículo e produção científica dos candidatos, que precisam ter título de doutor. Com a mudança, a produtividade das pesquisadoras mães é analisada levando em consideração os anos adicionais.
Antes, a iniciativa existia, mas era opcional e cabia ao comitê de cada área. Até então, somente 35% deles tinham incluído a cláusula da maternidade ou parentalidade em seus editais.
Embora considerem um avanço, pesquisadoras também questionam se a medida é suficiente. Um estudo da Parenting in Science que avalia o impacto da maternidade e paternidade nas carreiras científicas mostrou que, após o nascimento do primeiro filho, a queda no número de publicações científicas entre mulheres pode durar pelo menos quatro anos.
A quantidade e a qualidade das publicações é um dos principais fatores avaliados quando entidades vão conceder bolsas acadêmicas.
Para Helena Nader, presidente da Academia Brasileira de Ciências e professora emérita da Escola Paulista de Medicina, a extensão concedida às pesquisadoras mães não deve ser vista como privilégio, uma vez que estudos científicos apontam que após o nascimento de filhos a produtividade de mães cai em nível superior ao do pai.
"Se eu olhar eu para números somente eu vou continuar fazendo injustiças", diz. "Não deveria ser visto como privilégio. E isso deveria ser considerado por casais homoafetivos também. Estar presente não é só dar à luz. Dar à luz é dolorido, mas é fácil. O difícil é o que vem depois. Estar presente, criar."
Para a pesquisadora não se trata de um benefício extra, mas um reconhecimento da relevância do papel na sociedade.