A cidade é uma folha em branco. Nela tudo pode ser impresso: sonhos, poder, dramas, pontes, marquises, mendigos, milionários, mansões, castelinhos e poesia. Escrever em um muro é totalmente diferente de se escrever em uma folha falha de papel. O papel é o sussurro, enquanto a o muro é o megafone.
A poesia marginal utilizou o muro como um megafone para a sua expressão. Aqui, em Curitiba, por exemplo, Paulo Leminski e Alice Ruiz não eram pichadores, mas gritadores de versos públicos. Ocorria o mesmo em Brasília com Nicolas Behr, com Chacal no Rio de Janeiro, Ana Cristina Cesar e Cacaso. O muro é o espaço do grito.
Acontece que, atualmente, observando-se os muros de Curitiba parece que uma nova geração tomou a cidade como folha em branco. Até aí, tudo bem. Até há um saudosismo marginal da década de 70 veiculado até pela cor do spray, mas, também, há o perigo do "liberou geral: tudo é poesia". É possível notar que alguns artistas confundem o gênero pensamento com o gênero poema. Façamos, pois a devida diferenciação entre ambos.
O gênero textual pensamento é marcado pela concisão em transmitir um conceito geralmente doutrinador. Segundo os dicionários ele aproxima-se dos provérbios populares. O foco deste gênero não está na linguagem, mas na mensagem. Em outras palavras, a função referencial da linguagem se sobrepõe à função poética. Neste caso, não temos poema. Repare no exemplo a seguir, de autoria da jovem poeta Giovanna Lima, uma das expoentes da poesia de rua, que assina seus poemas com suas iniciais G.L.
Disfarçar amor
é crime
LIMA. Giovanna
Considerando a definição do gênero pensamento , é possível classificar este texto, não como poema, mas como pensamento. É notório seu discurso doutrinador e quando falo doutrinador, não significa autoritário, mas focado em uma lição de moral, transmitindo um ensinamento. Ora, o poema não tem função pedagógica, a menos que esteja em um livro didático sendo utilizado como pretexto para o ensino de algum tópico gramatical. Logo, o texto em questão não é um poema, mas um pensamento.
É claro que nem tudo o que um poeta escreve é poesia. Como diria Manoel de Barros "a poesia está guardada nas palavras" e não no pensamento expresso por palavras. A seleção é uma segunda autoria. O poeta é responsável pelo que escreve e mais responsável ainda pelo que publica, seja na página rebocada ou no muro em branco.
Em Curitiba, por pura falta de formação crítica e estética, muitos dos que se consideram poetas acham que tudo o que produzem é poesia. Parece que eles são possuídos por uma entidade infalível que lhes revela os "segredos dos versos". Então, tudo o que escrevem, publicam e por isso vemos cada livro de poemas que dá vontade de chorar, não de emoção ou fruição estética, mas de tristeza. É engraçado que a mesma entidade que ajuda o que se diz poeta a escrever não o ajuda a vender. É claro! Para vender boa poesia já é difícil, quem dirá vender versinhos de pé, mão, joelho, fêmur, cotovelo (este dói muito em Curitiba), pescoço e crânio quebrados!
É claro que o que eu disse acima não se aplica à jovem Giovanna Lima. Ela, como todo o bom poeta, é uma poeta em formação. Ao mesmo tempo em que ela grita pensamentos nos muros ela nos maravilha com belos poemas, tais como:
Quanto à poética
sou bem resolvida
de hermética
já basta a vida
LIMA, Giovanna
Aqui, já dá para notar o desaparecimento do tom doutrinador, o apagamento da lição de moral, do didatismo e do tom proverbial. É possível notar a preocupação com a linguagem. Rimas alternadas, melodia interessante, o estrato sonoro ensaia alguns voos e a distribuição das palavras nos versos está mais coerente.
No estrato semântico é interessante destacar a antítese interpolada entre vida e poética. Geralmente se considera a poética algo hermético e a boa vida algo bem resolvido, mas o "eu lírico", preso em uma torre hermética onde vive, lança suas tranças aos versos libertos e bem resolvidos. Esta liberdade que só consegue quem trabalha a linguagem e não apenas o pensamento.
Giovanna Lima parece ter talento para o verso, assim como outros poetas de murros e muros, mas precisa tomar cuidado com o que publica. O bom poeta escreve muito, mas seleciona mais do que escreve.
É claro que, pegando carona com os poetas de muros, há os que copiam os poemas de seus livros nos muros. Algo totalmente "FAKE", mais pasteurizado que leite tipo C. Poema de muro não está em livro, está livre!
Ao contrário de muitos cegos que se julgam poetas e que são guiados por outros cegos no intuito de receberem o "osso" de uma publicação ínfima em medíocres coletâneas, Giovanna Lima liberta-se da vida numa poética bem resolvida a giz, a tinta e a murro no muro.
Portanto, leitor incauto, não ache que qualquer coisa escrita no muro é poema. Muitas vezes são conselhos e se conselho fosse bom...
Um abraço a todos os meus exigentes leitores e em especial à jovem poeta Giovanna Lima que, como toda a boa e bem resolvida artista, está convidada a conviver com a crítica, uma crítica que não tem como objetivo desestimular, mas apontar novos caminhos para o que já é bom.
Professor Robson Lima
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