Falando de Literatura

Os Relógios de Dalí - A Poeta e o Tempo - por Jandira Zanchi

29 jan 2017 às 07:06

O e-book "Os Relógios de Dalí" de Isabel Florinda Furini pode ser adquirido no:
https://www.kobo.com/br/en/ebook/os-relogios-de-dali

A poetisa Jandira Zanchi fala sobre o livro:


Os Relógios de Dalí - A Poeta e o Tempo
REFLEXOS


no mundo das sombras
(com neblina nos olhos)
enxergamos o cenário


o amorfo
e os relógios desse quadro
observam-nos
e revelam faces ocultas
de nosso extinto passado.

Isabel Furini



Os relógios são , de todo o instrumental moderno da vida civilizada, monstros, enigmas e sedução, objetos que transcendem seu aspecto funcional por englobar, na estranha metafísica de sua função, toda a dramática existência humana. Eles revelam, minuto por minuto, segundo a segundo, a temporalidade de todo gesto, de toda forma e consistência da matéria. Mudos ou ritmando algumas badaladas são docemente sinistros. Avisam, no mundo criado para ilusão e segurança, o apagar de todas as cenas, a finitude dos amores e das escravidões, as rígidas leis da matéria, das formas e também dos sonhos. Concretizam o medo humano da morte contabilizando em frações criadas por homens e anunciam: tal fase ou sentimento dura tanto e já foram marcados esses movimentos, então, se preparem para os próximos e juntem algumas linhas de esquecimento, é necessário apagar da memória individual os nódulos, já sem vida, das suas emoções.


O quadro de Salvador Dali, A persistência da Memória, se tornou um dos símbolos da arte e estilo de vida do pintor surrealista. Os relógios, ou o tempo, se derretem, desmanchando no líquido das horas a formatação das estórias que o passado levou. As pegadas se diluem em novas pegadas, e o mundo conhecido de cada um de nós vai se apagando ou derretendo até desmanchar a própria contagem desse tempo. Mas, a memória, talvez um pouco confusa e também contaminada pela entropia que segue toda formação, segue adiante refazendo seus passos , recriando em contínuas montagens de fatos e imagens a história de cada personagem humano. E já desfeita de sua real motivação entrega outra memória para outras gerações e formações para que se inclua entre outros fragmentos também recriados, que procuram fazer acreditar que um único fio os une.



A poeta Isabel Furini acompanha os sentimentos que o tempo atrelado ao relógio de Dali , também imolado pelo tempo, sussurram para sua consciência/inconsciência. Impressões que só podem ser digeridas e expostas pela voz da poesia, pois não são exatas, antes, flutuam, se transformando a cada dia, a cada movimento, imprevisível, da memória. Em Mosaico Psíquico, narra a poeta :o passado é relógio mole e quebrado/ – foi-se./mas o passado criou condicionamentos/ e pode ser metamorfoseado/em foice, para anunciar ainda que:enquanto o presente é transformado/em um mar/ de angustiantes sentimentos/e de pesadelos (cinzentos).


O passado então é o cutelo, que distante e quase divino, nos julga. O presente, quase sempre, diluímos em nossos sentimentos (água). E indagamos, e a poeta também passeia pelos duros desmandos da dúvida, do medo, da insegurança. Em Indagações: onde estão o rio Estígia/a linha do horizonte/e a barca de Caronte?/quem criou a matriz?/quem marca a diretriz?


As deformações da memória não lhe escapam. São ditas em rápidos e sucintos versos, arredondados direto para o centro da dor, (em Rio): sonhos transtornados encalham no vazio/certezas rasgadas ancoram nos cais do tempo/provisórias certezas/pedras jogadas no rio de Heráclito....... paranoico-críticos o relógios de Dali/registram a deformação da memória.


Isabel Furini se detém em todas as perguntas, desassombra todas as ilusões e fantasias que jogamos na margem do tempo, aquelas com as quais brincamos, crianças em corpos de adultos, vencidos renitentes, implacáveis na constante auto sugestão de caminhar em algum percurso alheio aos processos de desmanche e deformação do tempo. Talvez por isso a autora escolheu como imagem, desse tempo madrasta, os derretidos relógios do surrealista, pois são marcadores de tempo, porém, se desmancham de forma terna e brincalhona, dignos e cientes de todas as transformações.


Jandira Zanchi


Jandira Zanchi é poeta e ficcionista, autora, entre outros, de Gume de Gueixa (Editora Patuá, 2013). Tem lançamento para breve de Área de Corte com a mesma editora. Integra o conselho editorial de mallarmargens revista de poesia e arte contemporânea.


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