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O silêncio - Conto de Franccis Yoshi Kawa

12 ago 2021 às 12:15

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O Silêncio

A velha cabana estava ocupada novamente. Uma garota da cidade havia tomado posse daquele imóvel sem dono e estava ditando regras. Ninguém poderia caçar naquela terra. As pessoas perguntavam quem era a intrometida.

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Os homens armados foram impedidos de caçar. Riram da proibição. Diferente de estereótipo de guardiã ou vigilante, aquela protetora dos bichos parecia inofensiva.

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Para suportar o peso da culpa que carregava, necessitava viver por uma boa causa. Trouxe consigo sua amiga cadelinha, que às vezes parecia um bebê quando estava em seu colo. Seu latido parecia dizer: mamãe!
O mundo havia se transformado em um inferno e aquele lugar era o seu purgatório. Precisava purgar a alma fazendo o certo. Tinha feito daquela imensidão deserta seu novo lar. Era muito mais que uma morada, era o destino final de sua fuga.

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Proibido caçar, dizia a placa de alerta. Tinha se transformado em protetora daquele local, cujo limite era a linha do horizonte.


Ninguém conhecia sua história, com exceção de Tito. Ele chegou logo depois, como se estivesse em seu encalço. Talvez estivesse. Tentava protegê-la embora soubesse que ela não aceitaria sua proteção, muito menos sua afeição. Filho de empregada, antes da catástrofe que destruiu as duas famílias, a dele e a dela.
Foram criados na mesma casa. Diziam que eles se casariam quando ficassem adultos. Ela o fez prometer que a amaria até a morte. Para ela era apenas brincadeira de criança. Eram amigos até o início da adolescência, quando Tito descobriu que o amor por ela era um sonho impossível. Foi mantido afastado no tempo de fartura. No tempo de miséria, apesar de estarem nas mesmas condições, ela continuou fora de seu alcance.

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Não havia necessidade de ajudá-la, mas Tito a amava. Nunca houve reciprocidade. Se alguém devia algum favor, era ela que nada fez por ele. Mas Tito não guardava mágoa. Achou normal ser desprezado por sua origem humilde. Naquela ocasião ela teria dito que um dia talvez, voltariam a ser próximo novamente. Parecia profecia. Era profecia. O mundo estava desmoronando e no escombro, ela não era melhor que ele.
Fotografia de Isabel Furini


A catástrofe havia começado após aquele show. O show que ela não deveria ter ido. A multidão se aglomerava e a vibração da caixa de som fazia o estádio tremer. A última aglomeração antes do apocalipse. Tito sabia que aquilo foi o início. Ela foi a primeira a adoecer e a primeira a se curar. O avô, a avó, a mãe e o pai, não tiveram a mesma sorte. Havia contaminado todos que moravam naquela casa. Patrões e empregados adoeceram. Tito nada disse, embora pudesse acusá-la de dizimar sua família.

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Não eram somente vidas perdidas. No ápice da tragédia a miséria atingiu a todos. Um mundo virado do avesso onde nada era como antes. Empresas falidas, empregos extintos, famílias dizimadas. No inferno em que o mundo se transformou não havia honra a ser perdida, nem dignidade perdida. Mendigar deixaria de ser vergonha. Seria apenas um ato de coragem expor a própria miséria.


Na solidão da cabana, ela está em silêncio. Tapa os ouvidos. Mas não pode impedir o som que invade a alma. Ainda ouve o rugir da multidão ecoando dentro de sua cabeça e a faz descabelar-se de remorsos.

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Longe dali, na cidade, não há show nem apresentação de músicos na rua. Apenas a polícia com máscaras tentando impedir as pessoas de se aglomerarem.
Naquela tarde Tito havia passado por ali informando que havia gente querendo se vingar. Gente que foi expulsa a bala por caçar naquela terra. Tentou convencê-la a ir embora com ele. Mas, ela disse que não podia abandonar seus amigos. "Quem ama, não abandona,” disse ela. Ele insistiu, implorou. Questionou rudemente a irracionalidade daquele amor pelos animais. Estava sendo preterido. Como podia amar os bichos mais que a ele? Ela nada disse. O silêncio dizia tudo.
Aquele amor era inatingível. Nada mais tinha a esperar, pelo menos naquele dia. Certamente no outro dia também.


Ele a deixou sozinha, apesar de saber que os caçadores queriam se vingar. Amanhecia quando acordou com barulho de tiros. Apanhou sua arma saiu em desabalada corrida.


Tarde demais. A cabana ardia em chamas. Vingança dos caçadores. Tito a encontrou caída. Como se houvesse um amanhã. Ele a pegou em seus braços rumo ao clarão do sol nascente. A cadelinha latia e o seu grunhido parecia humano. Cartuchos espalhados pelo chão. Silêncio cortado pelo estalo das chamas que subiam em labaredas

Franccis Yoshi Kawa é escritor, autor do romance "Um olhar no mirante".


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