Era uma lua de dezembro, a última:
vertigem e vertical,
o centauro-de-mim
apeou-se e gentilmente perguntou ao vento,
às palmeiras, às tanajuras, às avoantes:
— Quem a jovem, de ar tão calmo,
que fizera o potro estacar,
corcovear, empinar?
Então, as palmeiras,
o Vento, as avoantes
e as tanajuras foram voz:
«É uma serrana,
que também se assustou
com o teu estranho ginete.
«E fica sabendo, forasteiro,
aquela que quase te matou de susto
é a mais bela dentre todas as serranas,
desta Serra que chamam Grande,
dita também Ibiapaba:
«A mais bela.
Ela.
Cuidado!» — Disseram.
E numa lua bem próxima,
o mesmo potro, ainda mais selvagem,
risca às porteiras, escarva o chão,
e mais uma vez
as palmeiras, as avoantes
as formigas voadoras,
quando também o Vento frio são chamados
e confirmam:
«Ela —
— que não te esquece.
«Vê, forasteiro,
não chove há meses nesta serra,
mesmo assim, os regatos murmurejam,
o chão está ensopado
de tanta lágrima:
«Dela...
de só.
«Vieste roubá-la, temerário,
neste estranho animal,
que também é tuas costas,
t eus pés, tuas mãos?
«Ficaremos sozinhos?
Tens mesmo a coragem de levá-la?
Achas, aventureiro, que deixaremos?»
O potro-centauro não se intimidou
e explodiu resoluto:
«Vim buscá-la!
Li nos olhos dela,
ela disse que vai.»
Ao que a tanajura,
que sempre cria asas a se perder, disse:
«Sinto que você vai roubá-la;
não posso dar jeito.
«Trabalho a terra, trabalho o céu:
sou mais que pássaro,
se ela vai, vou com vocês»
Foi a vez da avoante:
«A tanajura sabe pouco do mundo,
nunca vai muito longe,
voa só um pouquinho,
se enterra outra vez.
«Sou de arribar, arribaçã,
groteio tudo, meu giro é amplo.
Se a moça vai, quer'ir também.»
A palmeira, puro ouro, puro verde, falou:
«Não dou fé em bicho que avoa.
Prefiro o chão, profundo, para enfiar,
prefiro o céu, vazio, para subir!
Donde raiz e céu contemplo tudo:
estou!
«No mesmo canto,
todos os dias, todas as horas,
tenho pacto com o Sol,
que sabe e precisa de mim:
por dentre o leque de minha copa,
os bichos suavizam os olhos
e contemplam, fulgente, o Sol,
de levante e ocidente:
é quando marco sombra vasta.
«Quando não instalo sombra nenhuma,
estou dividindo,
ao meio,
o dia!
«Compadre Sol sabe disto
«O Sol se aproveita do mim
para irisdescer o vale:
sem a franja da minha copa,
o clarão do Sol seria um luzeiro sem matiz.
Ele sabe!
«O tamanho e a direção da minha sombra
bendizem a aurora, abençoam o crepúsculo!
«Mesmo assim,
se a moça vai contigo, forasteiro,
sigo também...
«Onde chegarmos, deito raiz,
raízes que serão tuas,
raízes de céu, raízes de terra,
pois de vasta descendência.»
Eis que o Vento até então calado:
«Não estou gostando desta conversa!
«Já viste, forasteiro,
o perfume da moça, senão quando do meu soprar?
«A brisa, somente a brisa
consegue trazer-te a fragrância da rosa.
«Minhas:
a brisa, a fragrância;
talvez a rosa:
minhas!
«Lavro, para ti, os sons,
as palavras murmuradas,
quand'ela fala sozinha
e diz teu nome.
«Seriam a fugaz arribaçã,
a louca tanajura
que te levam recados?
«Quantos segredos já foi-te contar
a acomodada palmeira?
«Confias, forasteiro, em asa de formiga?
«Que a palmeira arrogante
se retrate da fábula que inventou do Sol!
Posso arrancá-la pela raiz!
«Levo e trago os murmúrios do regato.
Só eu sei peneirar a neblina:
quando mestre Sol timidamente
fabrica o Arco-íris, verdade mesmo,
o Artista sou eu —
tanjo as nuvens!
«Quem sustenta as aventuras da arribaçã?
«Vê se ela atreve um vôo contra mim?!
«Quem dá asas à tanajura
senão este velho Vento?
«E fica sabendo, forasteiro:
para o conforto da moça,
mando soprar ameno;
porém, intrépido e tórrido aos corações,
é assim que estremeço o assobio da noite
às biqueiras da saudade
quando a ausência
é medo.
«É assim que sei soprar,
e assopro. — Disse o Vento
E decidido, compadre Vento finalizou:
«De uma vez por todas,
fica sabendo:
se ela resolveu te seguir,
também vou.
Marquei território
numa lua de março:
Butim de guerra,
butim de susto:
trint'anos,
quero outros trinta!
Sim, eu quero! —
ela disse.
Poema de Soares Feitosa
Salvador, madrugada alta, 30.04.1995