Conto:
A MALA
Autoria:
José Aparecido Fiori
(José Aparecido Fiori é escritor e jornalista)
Pirilampos coriscavam as vidraças. Pernilongos vampirizaram a noite inteira. Picavam, beijavam os lábios cuspidos no lusco-fusco da madrugada bruxuleante. Das cortinas rasgadas da janela do claustro, o espectro do sol que começava a se empetecar nos camarins da serra para logo na ribalta brilhar.
O céu despia-se do véu da manhã, dissipando a densa neblina que envolvia a Catedral. O sacristão tocou o sino. Um padre embatinado, com a vela na mão, convidou o povo a rezar.
Tempos de penúria. A pandemia do ódio se disseminava. Os tambores da guerra ensurdeciam, rompiam os tímpanos dos labirintos ouvidos. Os fuzis destroçavam corpos de civis, mulheres e crianças nas guerras fratricidas. Bombardeios apocalípticos. O mundo ia acabar.
A vida era um fel, queria mel. Um cheiro de morte pairava no ar. O perfume do prazer me seduzia.
Na casa do Pai há muitas moradas. Tentava fugir da vontade de ir e da vontade de ficar. Rasguei a batina. Pequei contra a carne antes da quaresma começar.
Fim de uma tarde fagueira, o coração ardia uma fogueira. Meditava no bosque do Cajuru. Esperava nervosamente o tempo passar. Lançava minuto a minuto um olhar súplice da sacada do seminário. O dilema, a tentação, a solidão. Um pensamento mau, atirar-se do Viaduto dos Padres.
Dormia e levantava toda hora para mijar, sonâmbulo caído das insanas lutas sacras e profanas que não queriam cessar.
Arrisquei, fui...
A Kombi dos padres levou minha mudança, uma mala de mascate bem estufada comprada na lojinha do turco Naef, em Santa Fé. Despachada do Alto Cajuru para o Centro de Curitiba. Fora de moda, desajeitada, muito grande, eu não queria carregá-la. Tinha vergonha de adentrar o prédio chique e espelhado, pegar o elevador com a mala na mão. Mandei a mala na frente, fui atrás, cheguei até antes da mala. Neguei na portaria do prédio que a mala fosse minha, mas o desconfiado porteiro insistiu em perguntar. Acabei confessando, a mala não é minha, é de um amigo meu. Pequei por mentir.
Fui morar na república com outros, como eu, que pularam a cerca, renegaram o sacerdócio de Cristo. Novo endereço: Edifício Presidente, Rua Des. Westphalen, 265, terceiro andar, quarto no final do corredor à direita, beliche sem número.
E vieram a neve e a geada preta. Sem cobertor. Cobrimo-nos com um pacote de jornais da Gazeta do Povo.
Levei ‘emprestado’ do seminário, para não dizer subtraído, um colchão que ia ser jogado no lixo. A consciência novamente pesou. Pratiquei um delito, um pecado leve ou venial, mesmo sabendo da idade vencida do colchão de molas, sim, de molas expostas, avermelhado, marca “Imperador”. Tortuoso, com salientes arames farpados e pedaços de pau comidos por cupins. O mercado das pulgas não o compraria. Se fosse doado aos moradores de rua, eles o rejeitariam, fariam cu doce para nele pernoitar. O imprestável colchão imprescindível para eu dormir poderia causar problemas de coluna, dores no nervo ciático, bico de papagaio, pois é, causou.
Dentro da mala, trecos e tarecos, um chapéu de padre, uma camisa Volta ao Mundo, uma calça Tergal, um copo com cinco cuecas transparentes hediondas de feias, um rabo quente para ferver água para fazer a barba, chimarrão, chá. Livros Imitação de Cristo e Filotéia, a Bíblia Sagrada, Ecce Homo (Nietzsche), Diário de Um Sedutor (Kierkegaard). Cadernos de diários e memórias. Um pente flamengo inquebrável. Uma batina preta usada no trabalho apostólico, que minha mãe Ana, exímia costureira, transformou-a em uma calça que eu tanto precisava e usei até acabar. Levei também o colarinho branco clerical, um crucifixo e umas velas compridas da consagração religiosa, um rosário, uma partitura musical de Jesus Alegria dos Homens, do Haendel. Mas eu tocava no órgão de ouvido. E meu diploma em pergaminho de filósofo enrolado.
Dinheiro eu não tinha nada, nada, nada. Fiquei devendo aluguel e condomínio rateado entre uns dez moradores da reles república de exilados. Quase fui mandado embora da casa por inadimplência. Paguei. Fiquei.
Saí de padre, padre não pode casar. Talvez não fosse essa a essência do motivo da saída. A dogmática celibatária, porém, nunca me convenceu. Dura lex, sed lex. São Pedro, que foi papa, teve sogra. Paulo pregava que melhor casar que abrasar. Nunca casei. Tenho três filhos.
Se tinha vocação? Tinha. Tenho. Não sei. Apóstolo sem estola, bandido sem pistola, a batina preta eu nunca gostei de usar. Nem o colarinho branco. Como também não gosto de usar beca (logo associo com a malvista categoria dos rábulas e “devogados” ladrões), não gosto de toga (usada pelos malvistos juízes da corte suprema), não gosto de paletó e gravata (não gosto e pronto).
Saí pelo mundo afora, consegui umas aulinhas em cursinhos, dava para pagar mal e má o aluguel da república.
Saí da vida consagrada a D’us porque me achava um imundo pecador e queria ser santo. Ambicionava ser papa, como se fosse tão fácil assim. Mas era pecado ambicionar. Continuo padre e antipadre do meu jeito com defeito.
Os cânones e os dogmas têm que ser revistos. Não vejo o porquê de as mulheres não se ordenarem sacerdotes. Errado Sancta Mater Ecclesia.
A vida de padre era boa, comia como um padre, em torno de cinco refeições por dia. Eu era doido por marmelada. Peguei umas trocentas cáries de tanto comer doce. Na vida profana, passei fome, pão duro com água, comi o pão que o diabo amassou, fiquei malhadíssimo, com barriga de tanquinho, de tanto andar para vender livros, meu primeiro emprego no mercado informal. A coisa começou a despiorar depois que fui trabalhar como repórter de setor na extinta Gazeta do Povo.
Valeu! Viva a Vida!! Nada a reclamar, só a agradecer. Faria tudo de novo se no tempo pudesse voltar.
Apaixonei várias vezes, paixões e amores de perdição. Amei como Orfeu amou Eurídice, Dante amou Beatriz, Petrarca amou Laura, Kierkegaard amou Cordélia... Amei como quem ama a mulher errada. Tomei muitos pés na bunda. Dá nada não. Mas que dói, dói.
Aprendi que Jesus jamais proibiu o prazer decorrente do ato de amar. Amou, inclusive, a prostituta que os hipócritas (adúlteros) queriam apedrejar. Que não fornicou com ela, que atire a primeira pedra. Deu-nos o Novo Mandamento, amai a D’us, amai-vos uns aos outros como eu vos amei.
Por ordem de Melquisedeq, rezo a minha missa diária, prego primeiro para mim para ver se eu acredito em mim. Depois de ter pregado para mim e acreditar no que preguei, prego para quem quiser me ouvir pregar. Acho que posso...
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José Aparecido Fiori é paranaense, jornalista profissional diplomado em Jornalismo e Filosofia (Pura), escritor, poeta, autor dos livros "Textos Para Ouvir - Sobre a Eutopia do Silêncio", "Acontecências", "Dom Quixote Curitiba", "Lolita de Curitiba".
Recebeu vários prêmios de Jornalismo, Contos, Poemas e Monografias. Atualmente prepara o lançamento de seu novo livro, um romance místico que tem como pano de fundo a pandemia e o pânico gerados pelo Coronavírus.